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“Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor!
entrará no reino dos céus, mas aquele que
faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.”

(Mateus 7:21)

Solidariedade

 

 

O que caracteriza a solidariedade? Somos pessoas solidárias? Qual a contribuição do espiritismo para o desenvolvimento do sentimento solidário?  A solidariedade nos proporciona vantagens?

 

        

Solidariedade é o “sentimento de simpatia, ternura ou piedade pelos pobres, pelos desprotegidos, pelos que sofrem, pelos injustiçados etc.” [1]. Ela é, assim, essa disposição favorável para com aquela pessoa,  ou grupo de pessoas, que está passando por algum tipo de necessidade ou de dificuldade.

        

Mas ela não é somente sentimento. A solidariedade se define, sobretudo, pela ação. Por isso ela é também a “manifestação desse sentimento, com o intuito de confortar, consolar, oferecer ajuda etc.” [1], caracterizando-se pela “cooperação ou assistência moral que se manifesta ou testemunha a alguém, em quaisquer circunstâncias (boas ou más).” [1]

        

Entretanto, em nossa sociedade, o que está prevalecendo é justamente o oposto da solidariedade. E o que seria? O individualismo, ou, conforme um ditado popular: “cada um por si e Deus por todos”. E isso está ocorrendo porque nós ainda não sabemos pensar e agir coletivamente. Valorizamos muito mais os próprios interesses, numa clara manifestação de exclusivismo. Quantas não são as vezes em que, diante de problemas comuns, cada um pensa e age isoladamente, sem cogitar a hipótese de uma ação conjunta, de um esforço solidário?

        

Contudo, nessa lei do “cada um por si”, deixamos de perceber que, ao buscarmos o bem comum, todos são indistintamente beneficiados.

        

Quando, enfim, compreendermos que, isoladamente, não conseguimos verdadeiramente vencer, que juntos somos melhores e muito mais sábios do que cada um sozinho,  teremos, finalmente, aprendido que a solidariedade beneficia tanto aquele que a pratica  como aquele que a recebe.

        

Na questão 799, de O Livro dos Espíitos, Allan Kardec pergunta:

“De que maneira o Espiritismo pode contribuir para o progresso?”

        

Resposta:

Destruindo o materialismo, que é uma das chagas da sociedade, ele faz os homens compreenderem onde está o seu verdadeiro interesse. (...) Destruindo os preconceitos de seitas, de castas e de cor, ele ensina aos homens a grande solidariedade que deve uni-los como irmãos. [2]

 

Será somente através desse interesse pelo bem estar geral, que conseguiremos, como sociedade, estabelecer uma nova ordem de convivência social, em que as necessidades naturais de todo ser humano – alimentação, moradia, lazer, família, conhecimento... – serão direitos garantidos a todos que aqui renascerem.

        

O francês Léon Denis (1846-1927) – um dos principais continuadores do espiritismo após a morte de Allan Kardec –, argumenta que o Espiritismo, através da lei da reencarnação:

 

(...) ensina-nos que os homens são solidários uns com os outros, unidos por uma sorte (destino) comum. As imperfeições sociais, de que todos mais ou menos sofremos, são os resultados de nossos erros coletivos no passado. Cada um de nós traz a sua parte de responsabilidade e tem o dever de trabalhar para o melhoramento do destino geral. [3]

A doutrina das reencarnações aproxima os homens mais do que qualquer outra crença, ensinando-lhes a comunidade de origens e fins, mostrando-lhes a solidariedade que os liga a todos no passado, no presente, no futuro. Diz-lhes que não há, entre eles, deserdados nem favorecidos, que cada um é filho de suas obras, senhor de seu destino. Nossos sofrimentos, ocultos ou aparentes, são consequências do passado ou também a escola austera onde se aprendem as altas virtudes e os grandes deveres. [4]

 

A crença na reencarnação nos desestimula, veementemente, a cuidar de nossos exclusivos interesses. Ao  nos conscientizarmos de tal realidade, sentimo-nos imbuídos pelo trabalho de aprimoramento de nossos deveres para com todas as criaturas – incluindo, também, a natureza  e os animais –, porque passamos a compreender que a construção de uma saudável interdependência entre todos necessita de um alicerce fortemente estruturado na igualdade, na fraternidade e na solidariedade.

 

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A solidariedade – esse sentimento, portanto, de identificação (de reconhecimento) das dificuldades/necessidades alheias e consequente boa vontade para a cooperação – nos habilita a sairmos de nós mesmos e a nos colocarmos no lugar do outro. E, ao deixarmos de lado nossos egoísticos desejos, é-nos possível até, em determinadas circunstâncias, abrir mão de alguma satisfação nossa em benefício do bem estar alheio.

        

Para ilustrar a maneira como ocorre essa dinâmica da solidariedade – beneficiar tanto aquele que faz como aquele que recebe –, temos o seguinte conto, inspirado no escritor russo Léon Tolstoi:

                  

Depois de castigar os campos da Rússia por meses ininterruptos em 1860, o inverno parecia finalmente dar sinais de enfraquecimento.Vendo que a neve se mantinha estável ao longo de sua imensa propriedade, o senhor mandou chamar dois de seus melhores camponeses e lhes deu a incumbência de viajar a uma aldeia distante para tratar de um contrato de extrema importância para o futuro de seus negócios.

Pushkin e Martuin foram os encarregados. Acordaram cedo numa fria e escura manhã, atrelaram um robusto cavalo ao trenó e seguiram. A viagem deveria durar sete ou oito horas.

Antes do meio-dia, no entanto, começou a nevar. Logo a nevasca tornou pior a visibilidade e dificultou ainda mais o trote do animal. Hábeis e experimentados, Pushkin e Martuin mesmo assim faziam o trenó prosseguir. Mas, um dos patins do carro caiu numa vala e foi impossível tirá-lo dali. Eles tiveram de livrar o cavalo e retomar a caminho a pé.

O frio era cortante. Envolvidos em seus pesados casacos e afundando na neve que atingia seus joelhos, os camponeses caminhavam sem ver casa ou aldeia em que pudessem pedir abrigo. As horas passavam e a situação não se alterava.

(...) Estavam nessa situação terrível quando avistaram dois corpos jogados na neve. Aproximaram-se e viram uma mulher ao lado de uma criança de dois ou três anos. A mãe falecera. Mas o menino ainda respirava, com extrema dificuldade. Martuin apanhou-o e o trouxe aos braços.

- Que você está fazendo? Ficou louco? – perguntou-lhe Pushkin

- Ele ainda está vivo.

- Sim, e daí? Como é que você vai levar a criança, se não aguenta o peso do próprio corpo?

- Eu pensei que poderíamos fazer um revezamento...

- Comigo? Já estou tendo trabalho demais para salvar minha vida!

E dizendo isso, Pushkin se afastou e sumiu atrás de um monte de neve. Martuin acomodou o pequeno em seu colo. Para esquentá-‑lo, colocou-o em contato direto com sua pele e o cobriu com suas roupas. E agora, duplamente trôpego em função do novo peso que agregava ao seu, seguiu adiante.

A tarde passou lentamente e a neve não deu tréguas. O frio começava a adormecer os membros de Martuin e a convencê-lo a parar de andar. A ideia de que precisava salvar aquela vida em seu regaço, no entanto, o fazia prosseguir. 

Assim foi que à noite, extenuado, enregelado e faminto, chegou a uma pequena aldeia. Foi recebido magnificamente pelos aldeãos, que tomaram todas as medidas necessárias à acomodação e à restauração da saúde dele e da criança.

Ali ficou vários dias. Quando as condições do tempo permitiram, um médico veio à aldeia.

Todos estavam maravilhados de que Martuin tivesse sobrevivido àquela terrível tempestade e pediam para ele contar inúmeras vezes sua aventura na neve. Achavam um verdadeiro milagre que estivesse vido depois de uma nevasca que vitimara centenas de pessoas em toda a região, segundo dados do governo.

Após ouvir o que seu cliente narrara, o doutor concluiu:

- A sorte do Martuin foi ter achado o menino. Ao colocá-lo de encontro ao peito, dava calor para ele, mas também recebia. Os dois mantinham-se alimentados por essa fonte interna de calor. E foi por isso que resistiram ao frio.

E na lista das vítimas do inverno daquele ano, constava o nome de Pushkin. Seu corpo fora encontrado a poucos metros do lugar onde Martuin resgatou a criança. [5] 

 

Esse conto enfaticamente nos demonstra as vantagens da solidariedade: o amparo recíproco, a troca de benefícios, a criação de genuínos laços de amizade, o intensificar das qualidades humanas, o desenvolvimento do amor.

        

Quanto mais saímos de nós mesmos, mais vencemos o próprio egoísmo, e mais satisfação e alegria podemos encontrar em ajudar, em compartilhar. Maiores passam a ser também nossas possibilidades de trabalhar pelo próprio bem-estar.

        

Assim, imprescindível é que nos conscientizemos de que nosso íntimo se ilumina a cada pensamento de benevolência, a cada ímpeto de solidariedade. E se esses gestos de interesse se repetirem e se multiplicarem, mais cresceremos, mais evoluiremos.

        

O psicólogo e escritor espírita Adenáuer Novaes nos oferece o seguinte incentivo, defendendo que:

 

 

A felicidade conquistada por alguém pode ser compartilhada, de tal forma, que ela venha a contagiar outras pessoas. É necessário que pensemos na formação de redes de ajuda mútua, que se estruturam a partir do tempo livre de cada um. É necessário que não entreguemos a melhoria da sociedade aos outros ou mesmo às instituições para isso criadas. Elas farão o papel delas, mas não irão além daquilo a que se propuseram como organizações oficiais. A criatividade de cada ser humano sempre será a grande alavanca para seu próprio desenvolvimento social e espiritual.

(...) É preciso lembrar que, quanto mais nos empenharmos em favor da sociedade, mais estaremos fazendo por nós mesmos. O trabalho em favor do social deve ser levado a efeito, ao mesmo tempo em que o realizamos por nossa melhoria pessoal.

Forme redes de ajuda. Organize grupos de apoio a causas humanitárias. Engaje-se em trabalhos organizados por instituições conhecidamente sem fins lucrativos. Ocupe parte de seu tempo com atividades nas quais seu benefício seja a felicidade alheia. Faça a sua parte, independente de quem seja o responsável pelo todo.

Seja feliz enquanto proporciona a felicidade alheia. Faça-o por si mesmo e não para alívio de sua culpa. Sua culpa é uma questão interna e o trabalho em favor do próximo é algo externo. O sentimento de utilidade gerado no serviço à sociedade pode conectá-lo ao que há de melhor em si mesmo, fortalecendo-o para os momentos em que se defrontar com as dificuldades internas. Dessa forma, somos recompensados pelo bem que fazemos aos outros. [6]

        

O indivíduo que se envolve com o trabalho voluntário é aquele que, em razão de seu impulso solidário, presta serviços não remunerados em benefício de uma causa ou de uma comunidade, doando seu tempo, conhecimentos e disposição, para atender tanto às necessidades do próximo quanto às próprias motivações pessoais, sejam estas de caráter religioso, cultural, filosófico ou emocional. Atualmente, ser voluntário significa ser uma criatura engajada, participante e consciente da importância de sua contribuição para a construção de uma sociedade mais equilibrada.

 

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Podemos afirmar que Jesus foi um indivíduo que viveu, sobretudo, para confortar a dor alheia. Principalmente em uma época em que as dificuldades eram tão grandes e as diferenças entre as classes sociais tão intensas, sua atitude foi a de alguém que sempre buscou agregar todos no Todo. E sua mensagem, até hoje, nos concita à comunhão e à consolação.

        

Quando ensinou que “quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo; tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir” (Mt 20: 26-28), enfaticamente nos conclamou à prática da ajuda mútua e da assistência recíproca, numa época em que a solidariedade e o trabalho eram tão pouco valorizados.

        

Quando recomendou “ameis uns aos outros, assim como eu vos amei” (Jo 15:12), proclamou que a boa vontade desinteressada é o único caminho para o desenvolvimento da confiança e do entendimento recíproco, requisitos essenciais à conquista de uma harmoniosa convivência social.

 

        

 

CONVITE À SOLIDARIEDADE

 

“Trata-o, e quanto gastares de mais, na volta eu te pagarei.”

(Lc 15:35)

 

São muitos os necessitados que desfilam aflições, aguardando entendimento e socorro.

 

Uns estão assinalados rudemente por deformidades visíveis que constituem a cruel recidiva de que precisam para aprender conduta e dever.

 

Outros se encontram sitiados por limitações coercitivas que funcionam como presídio correcional, a fim de os habilitarem para futura convivência social.

 

Alguns se apresentam com dificuldades no raciocínio e na lucidez, embora a aparência harmoniosa, como se fossem estetas da forma emparedando misérias mentais que os ensinam a valorizar oportunidade e bênção.

 

Diversos conduzem feridas expostas, abertas em chagas purulentas, com que drenam antigas mazelas e corrigem paixões impressas nos painéis do perispírito, submetido à terapêutica renovadora...

 

Vários estão estigmatizados a ferro e fogo, padecendo dores morais quase superlativas, em regime de economia de felicidade, exercitando as experiências da esperança.

 

Um sem número de atados à fome e à discriminação racial, sob acicates poderosos, estão treinando humildade para o futuro.

Todos aguardando piedade, ensejo para conjugarem os verbos servir e amar.

 

Há outros, porém, esperando solidariedade.

 

São os construtores do ideal edificante, os servidores desinteressados, os promotores da alegria pura, os trabalhadores da fraternidade, os governantes honestos, os capitães da indústria forjados no aço da honradez, os pais laboriosos, os mestres e educadores fiéis ao programa do bem...

 

Sim, não apenas os que pagam o pretérito culposo, mas, sobretudo, os

que estão levantando o Mundo Novo dos escombros que jazem no chão daHumanidade. Nobre e fácil chorar a dor ao lado de quem sofre.

Felizes, também, os que podem oferecer-se, solidários, aos que servem e amam ao Senhor, não obstante os diversos nomes e caminhos pelos quais se desvelam, operários da Era Melhor do amanhã ditoso.

 

Solidariedade, também, para com os que obram no bem.

 

 

 

Silvia Helena Visnadi Pessenda

sivipessenda@uol.com.br

 

 

REFERÊNCIAS

 

[1] HOUAISS: dicionário. Solidariedade. Disponível em: www.uol.com.br. Acesso em: 18.09.2010.

 

[2] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Salvador Gentile, revisão de Elias Barbosa. 100. ed. Araras, SP: IDE, 1996.

 

[3] DENIS, Léon. O problema do Ser, do Destino e da Dor. 18. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira. Cap. XVI: As vidas sucessivas. Objeções e críticas.

 

[4] idem. Cap. XVIII: Justiça e responsabilidade. O problema do mal.

 

[5] LEAL, Marconi. O amor é uma via de duas mãos. Revista Internacional de Espiritismo. Matão: Casa Editora O Clarim. Ano LXXVII, nº 10, Novembro/2002.

 

[6] NOVAES, Adenáuer M.  F. de. Felicidade sem culpa. 2. ed. Salvador: Fundação Lar Harmonia. 2002. Cap: Felicidade em rede.

 

[7] ÂNGELIS, Joanna de (espírito); FRANCO, Divaldo Pereira (psicografado por). Convites da vida. Salvador, BA: Livr. Espírita Alvorada. Cap. 55.

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