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“Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor!
entrará no reino dos céus, mas aquele que
faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.”

(Mateus 7:21)

Dor

 

 

O que é a dor? Existem somente a dor física? Por que não incluímos a dor em nosso repertório de possibilidades? Quem a cria, Deus ou o próprio homem? Carrega ela, em si, alguma função positiva?

 

 

O que é a dor? Quando relacionada ao corpo, é um sofrimento físico desagradável ou penoso, causado por alguma disfunção orgânica. Mas existe também a dor moral, cuja sensação, igualmente desagradável ou penosa de padecimento e mágoa, de pesar e amargura, ocorre no íntimo do indivíduo.

        

Há que se considerar que a grande maioria das pessoas ainda não se conscientizou do sentido metafísico da vida no planeta Terra, porque muitas sequer compreendem, com a devida profundidade e extensão, os múltiplos aspectos e ocorrências que dizem respeito à própria realidade. Buscam, assim, com sofreguidão, as alegrias, o prazer físico e material, bem como a satisfação imediata de seus anseios. Obviamente que consideram uma benção a ausência de problemas, pois, enquanto tudo transcorrer da maneira como desejam, por que se preocuparem com assuntos que fogem ao seu entendimento ou se comprometerem com o amadurecimento pessoal? Devido ao fato de a dor não fazer parte do seu repertório de possibilidades, e porque também não estão predispostas a reflexões um tanto mais sérias e profundas quanto à sua natureza transcendental, quando se deparam com aflições mais intensas e sofrimentos mais pungentes, podem se desesperar e desanimar, ou se revoltar ou, ainda, sofrer de depressão crônica.  

        

A dor, física ou moral, pode possuir em si alguma função positiva? Não nos seria mais conveniente a sua inexistência? Quem a cria, Deus ou o próprio homem?

        

Comecemos pelas considerações de Allan Kardec:

 

Devendo o homem progredir, os males, aos quais está exposto, são um estimulante para o exercício da sua inteligência, de todas as suas faculdades, físicas e morais, iniciando-o na pesquisa dos meios para deles subtrair-se. Se não tivesse nada a temer, nenhuma necessidade o levaria à procura dos meios, seu espírito se entorpeceria na inatividade; não inventaria nada e não descobriria nada. A dor é o aguilhão que impele o homem para a frente, no caminho do progresso. [1]

 

Dessas palavras, podemos afirmar que aquilo que mais incomoda uma pessoa é o que pode lhe prestar maiores benefícios, porque a impele a outras descobertas e às mudanças. E bem sabemos que, se não formos incomodados, a tendência é nos acomodarmos. Por isso que a dor, em suas diversas fases, num primeiro momento nos faz voltar para dentro de nós mesmos, para, somente depois, nos predispor à superação do desconforto. Assim, uma das funções da inteligência é se ocupar daquilo que não está indo bem em nossa vida e encontrar alguma alternativa ou solução para a dor que daí decorre. Quando estamos, por exemplo, com um problema mais contundente, não é ele que monopoliza nossos pensamentos e sentimentos? Daí as palavras do espírito André Luiz: “Dor, para nós, significa possibilidade de enriquecer a alma”. [2]

        

Continuando com seu raciocínio, Kardec pondera sobre outro aspecto funcional da dor:

 

Mas, os mais numerosos males são aqueles que o homem cria para si mesmo, pelos seus próprios vícios, aqueles que provêm de seu orgulho, de seu egoísmo, de sua ambição, de sua cupidez, de seus excessos em todas as coisas.

(...) Deus estabeleceu leis, plenas de sabedoria, que não têm por objetivo senão o bem; o homem encontra em si mesmo, tudo o que é necessário para segui-las; sua rota está traçada pela sua consciência; a lei divina está gravada no seu coração. (...) Se o homem se conformasse, rigorosamente, com as leis divinas, não há dúvida de que evitaria os mais pungentes males, e que viveria feliz sobre a Terra. Se não o faz, é em virtude do seu livre-arbítrio, e, disso sofre as consequências.” [1]

 

Viver com prazer é o desejo de todos. É óbvio que ninguém, em sã consciência, quer a dor para si e para seus amados, mas buscar a felicidade de maneira equivocada pode provocá-la!  É considerável o número de pessoas que criam para si complicados e pesados compromissos, justamente por não considerarem que o aparente prazer de hoje pode se transformar, posteriormente, numa dor bastante extensa e prolongada.

        

Com a literatura espírita podemos aprender que a lei de causa e efeito diz respeito à contabilidade que o próprio indivíduo gera para si: são os créditos e os débitos acumulados no decorrer de toda a trajetória evolutiva, através das sucessivas reencarnações. Assim, a dor que alguém esteja vivenciando é, de fato, sua própria criação, porque, em algum momento da atual existência ou das anteriores, fez escolhas e opções que o distanciaram das leis divinas, responsáveis que são pela sustentação da harmonia do Universo físico e do universo moral de cada um de nós.

        

Na obra Ação e reação, o Espírito André Luiz enfatiza:

 

Nossas manifestações contrárias à Lei Divina, que é, invariavelmente, o Bem de Todos, são corrigidas em qualquer parte. Há, por isso, expiações no Céu e na Terra. [3]

O Senhor transforma o veneno de nossos erros em remédio salutar para o resgate de nossas culpas... (...) Aprende a sofrer com humildade para que a tua dor não seja simplesmente orgulho ferido. [4]

 

Todas as infelicidades são consequências de anteriores condutas equivocadas. E todos nós imploramos a ausência da dor! Mas seu objetivo não é nos punir e, sim, disciplinar-nos, porque ela é autocorreção que trabalha em prol do nosso equilíbrio íntimo. Nem que tenha de ser através da dor, a harmonia vigente no Universo jamais cessa de atrair os indivíduos para si, a todos possibilitando repetidas oportunidades de reavaliação, de tomada de consciência e de um diferente recomeço.

        

Léon Denis (1849-1927) – escritor espírita francês, contemporâneo de Allan Kardec, considerado o Apóstolo do Espiritismo – poeticamente desenvolve o assunto em seu livro O Problema do Ser, do Destino e da Dor:

  

Por mais admirável que possa parecer à primeira vista, a dor é apenas um meio de que usa o Poder Infinito para nos chamar a si e, ao mesmo tempo, tornar-nos mais rapidamente acessíveis à felicidade espiritual, única duradoura. É, pois, realmente, pelo amor que nos tem, que Deus envia o sofrimento. Fere-nos, corrige-nos como a mãe corrige o filho para educá-lo e melhorá-lo; trabalha incessantemente para tornar dóceis, para purificar e embelezar nossas almas, porque elas não podem ser verdadeiras, completamente felizes, senão na medida correspondente às suas perfeições.

Para isso pôs Deus, nesta terra de aprendizagem, ao lado das alegrias raras e fugitivas, dores frequentes e prolongadas, para nos fazer sentir que o nosso mundo é um lugar de passagem e não o ponto de chegada. Gozos e sofrimentos, prazeres e dores, tudo isto Deus distribuiu na existência como um grande artista que, na tela, combina a sombra e a luz para produzir uma obra-prima. [5]  

 

Ao lerem essas palavras, muitos daqueles que, rápida e superficialmente, tomam contato com os postulados do Espiritismo, podem acreditar que ele cultua a dor e o sofrimento como forma de se encontrar a felicidade.  Entretanto, a Doutrina Espírita, primeiramente, dilata nossa compreensão a respeito de Deus: não é Ele um ser punitivo e vingativo, mas uma inteligência que, com supremacia, se fez causa primeira de todas as coisas.

        

Em virtude de a ótica espírita ser, essencialmente, otimista, a dor e os obstáculos deixam, com efeito, de ser interpretados como castigos, para assumirem o papel de instrumentos de aprimoramento também necessários ao processo de evolução. Assim, a existência ganha um sentido muito mais transcendente e dinâmico, porque ensina que todas as criaturas foram criadas com um destino marcado: a perfeição, a angelitude. O erro, desse modo, passa a ser compreendido como um desvio que pode ser refeito a qualquer instante; e se o indivíduo optar pela reparação de seus equívocos, de livre e espontânea vontade, por que a Sabedoria Divina precisará fazer uso de um mecanismo doloroso, que terá por objetivo, pura e simplesmente, acordar-lhe a consciência?

 

 

 

Perante a dor

 

“E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando a vossa mente, a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus.” (Romanos, 12:2)

 

Nossas dores podem ser analisadas como fonte de aprendizagem ou cárcere de lamentação. Elas surgem para que possamos perceber o que precisamos melhorar ou reformular interiormente.

           

Dificuldades e conflitos são materializações de atos e atitudes íntimas que precisam ser reavaliados. Portanto, não tomemos postura de vítima perante as dores; antes busquemos em nós mesmos as causas que as motivaram.

           

Quem vive se justificando diante do sofrimento não quer renovar-se, e quem se acomoda transforma as dificuldades em conflito, fazendo da existência um verdadeiro tormento.

           

Talvez a falta de flexibilidade seja a causa primária de muitos de nossos desajustes. A vítima não quer ver a realidade, o equívoco e os limites humanos; simplesmente veste o “manto da infelicidade” e culpa o mundo que a rodeia.

           

Criaturas flexíveis e abertas utilizam-se de atitudes experimentais, jamais definitivas. Fazem novas “leituras do mundo” e reavaliam ideias e ideais, sempre que surjam novos fatos ou acontecimentos.

           

Eis a regra de ouro diante da dor: “jamais se imobilizar no tempo e nunca fechar as ‘cortinas da janela’ da alma, pois isso leva a uma vida de ilusões e vazia de experiências”. O amanhã existe para que não fiquemos presos no hoje.

           

“E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos, renovando a vossa mente, a fim de poderdes discernir qual é a vontade de Deus.”

           

A “vontade de Deus” nada nos apresenta que não seja educativo e fecundo para o nosso crescimento e renovação interior. Examinemos cuidadosamente nossas aflições; nelas estão contidos os avisos e lembretes de que necessitamos para harmonizar a nossa existência. [6]

 

 

 

Silvia Helena Visnadi Pessenda

sivipessenda@uol.com.br

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

[1] KARDEC, Allan. A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Tradução de Salvador Gentile, revisão de Elias Barbosa. 8. ed. Araras, SP: IDE, 1995. Cap. 3. p. 61-62.

 

[2] ANDRÉ LUIZ (espírito); XAVIER, Francisco Cândido (psicografado por). Nosso lar. 49. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira,1999. Cap. 6. p. 44.

 

[3] ANDRÉ LUIZ (espírito); XAVIER, Francisco Cândido (psicografado por). Ação e Reação. 21. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2001. Cap. 7. p. 95.

 

[4] Idem. Cap. 31. p. 173.

 

[5] DENIS, Léon. O problema do Ser, do Destino e da Dor. 18. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira. Cap. 26. p. 380-381.

 

[6] HAMMED (espírito); SANTO NETO, Francisco do Espírito (psicografado por). Um modo de entender: uma nova forma de viver. 1. ed. Catanduva, SP: Boa Nova Editora, 2004.

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