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“Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor!
entrará no reino dos céus, mas aquele que
faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.”

(Mateus 7:21)

Céu e inferno

 

O céu e o inferno verdadeiramente existem? Estão eles localizados em algum lugar circunscrito, como, por exemplo, no espaço sideral ou no centro da Terra; ou representam a condição íntima de cada indivíduo? Por que temos tanto medo do inferno? E como fazer, então, para conquistar o céu?

 

 

Céu é uma palavra derivada do latim caelum, que significa "abóbada celeste, morada dos deuses".

 

Ainda na atualidade, esse vocábulo sustenta um duplo significado: o astronômico, estudado pelos cientistas; e o religioso, almejado pela maioria das pessoas. E o por quê  de existir essa  segunda interpretação? Porque, conforme o entendimento de quase todas as religiões, o céu é um “lugar” onde os justos gozarão de felicidade eterna. Portanto, trata-se de uma realidade superior e que, obviamente, se opõe ao inferno. Historicamente, a concepção de inferno, sempre esteve associada a imagens de dor, de sofrimento e de suplício, haja vista a ideia de nele morarem almas que, em vida, praticaram os mais diversos erros – fossem eles graves ou nem tanto –, e que não se arrependeram por seus atos.

 

E quais os ensinamentos a Doutrina Espírita e sua literatura nos trazem sobre o assunto?

 

O Espírito André Luiz, em algumas de suas obras, ressalta:

 

Quase todas as escolas religiosas falam do inferno de penas angustiosas e horríveis, onde os condenados experimentam torturas eternas. São raras, todavia, as que ensinam a verdade da queda consciencial dentro de nós mesmos, esclarecendo que o plano infernal e a expressão diabólica encontram início na esfera interior de nossas próprias almas. [1]

(...) cada homem, por si, elevar-se-á ao céu ou descerá aos infernos transitórios, em obediência às disposições mentais em que se prende. [2]

Deus criou seres e céus, mas nós costumamos transformar-nos em espíritos diabólicos, criando nossos infernos individuais. [3]

 

Com o Espiritismo, podemos aprender que o “céu” ou o “inferno” começam, invariavelmente, dentro de nós, visto exprimirem o equilíbrio ou a perturbação, a alegria ou a dor, a consciência em paz pelo bem realizado, ou a que se encontra carregada de remorsos pelos equívocos cometidos.

 

Estejamos encarnados – vivendo na Terra – ou desencarnados – habitando esferas do mundo espiritual –, tudo o que nos rodeia foi, inicialmente, gerado em nosso próprio íntimo, porque são os nossos sentimentos e pensamentos que determinam a realidade que nos envolve. Quando, verdadeiramente, nos conscientizarmos da capacidade que todos possuímos de materializar no exterior o que somos por dentro, entenderemos que cada um de nós vive no mundo de luz ou de trevas que escolheu para si próprio.

 

O dogma do inferno – como sendo uma região horrível de dores, sem esperanças e sem termo, síntese de todas as agonias e suplícios – representa a extrema negação da onipresença e onipotência de Deus e, obviamente, de Sua bondade, misericórdia e justiça, pois não se concebe Seu controle e Sua autoridade nessa região de desespero sem fim.

 

No entendimento teológico, o inferno é um lugar onde as almas sofrem eternamente. Na visão espírita, trata-se de um estado d’alma transitório, que existe enquanto a criatura desrespeitar as leis de equilíbrio e harmonia que sustentam o Universo, ou permitir  que prevaleça em seu íntimo a rebeldia, a revolta, o sofrimento, a angústia...

 

Ainda do Espírito André Luiz, temos:

 

Muitas igrejas não compreendem, por enquanto, que não devemos espalhar a crença nos tormentos eternos para os desventurados, e sim a certeza de que há homens infernais criando infernos para si mesmos. [4]

 

Esteja o indivíduo encarnado ou desencarnado, o inferno nada mais é do que um estado de amargura e de dor, sustentado por aquele que se encontra em profundo desequilíbrio ou que se culpa por suas escolhas e opções. Todavia, o sofrimento que suscita profundas reflexões existirá apenas até que ele se conscientize da necessidade de mudança interior, a fim de reparar ou reconstruir tudo aquilo que prejudicou ou danificou.

 

Em virtude da forte e secular crença nas “penas eternas”, em O Livro dos Espíritos, Allan Kardec questiona a Espiritualidade Superior:

“A duração dos sofrimentos do Espírito pode ser eterna?”

 

Resposta:

“Sem dúvida, se for eternamente mau, quer dizer, se não deva jamais se arrepender nem se melhorar, ele sofrerá eternamente. Mas Deus não criou seres para que sejam perpetuamente devotados ao mal. Ele não os criou senão simples e ignorantes, e todos devem progredir num tempo mais ou menos longo, segundo sua vontade. A vontade pode ser mais ou menos tardia, como há crianças mais ou menos precoces, contudo, ela vem, cedo ou tarde, pela irresistível necessidade que o Espírito experimenta de sair de sua inferioridade e ser feliz. A lei que rege a duração das penas é, pois, eminentemente sábia e benevolente, visto que subordina essa duração aos esforços do Espírito; ela não lhe tira jamais seu livre-arbítrio: se dela faz mau uso, suporta-lhe as consequências.”   [5]

 

No entanto, criaturas existem que guardam verdadeiro pavor do “inferno”, mas, por comodismo, não se envolvem com realizações que lhes garantam a conquista do “céu”. Sem dizer daquelas outras que acreditam que tão somente com pedidos e rezas é que Deus lhe reservará um lugar à Sua direita. A crença na existência de um local de felicidades eternas, porém estanque, apenas existe na mente daqueles que pretendem a bem-aventurança sem trabalho e sem esforço. A crônica intitulada “O devoto desiludido” ilustra perfeitamente essa realidade.

 

O fato parece anedota, mas um amigo nos contou a pequena história que passamos para a frente, assegurando que o relato se baseia na mais viva realidade.

Hemetério Rezende era um tipo de crente esquisito, fixado à ideia de paraíso. Admitia piamente que a prece dispensava a boas obras, e que a oração ainda era o melhor meio de se forrar a qualquer esforço.

‘Descansar, descansar!...’ Na cabeça dele, isso era um refrão mental incessante. O cumprimento de mínimo dever lhe surgia à vista por atividade sacrificial e, nas poucas obrigações que exercia, acusava-se por penitente desventurado, a lamentar-se por bagatelas. Por isso mesmo, fantasiava o ‘doce fazer nada’ para depois da morte do corpo físico. O reino celeste, a seu ver, constituir-se-ia de espetáculos fascinantes de permeio com manjares deliciosos... Fontes de leite e mel, frutos e flores, a s e revelarem por milagres constantes, enxameariam aqui e ali, no éden dos justos...

Nessa expectativa, Rezende largou o corpo em idade provecta, a prelibar prazeres e mais prazeres.

Com efeito, espírito desencarnado, logo após o grande transe foi atraído, de imediato, para uma colônia de criaturas desocupadas e gozadoras que lhe eram afins, e aí encontrou o padrão de vida com que sonhara: preguiça louvaminheira, a coroar-se de festas sem sentido e a empanturrar-se de pratos feitos.

Nada a construir, ninguém a auxiliar...

As semanas se sobrepunham às semanas, quando, Rezende, que se supunha o céu, passou a sentir-se castigado por terrível desencanto. Suspirava por renovar-se e concluía que para isso lhe seria indispensável trabalhar...

Tomado de tédio e desilusão, não achava em si mesmo senão o anseio de mudança.

À face disso, esperou e esperou, e, quando se viu à frente de um dos comandantes do estranho burgo espiritual, arriscou, súplice:

– Meu amigo, meu amigo!... Quero agir, fazer algo, melhorar-me, esquecer-me!... Peço transformação, transformação!...

– Para onde deseja ir? – indagou o interpelado, um tanto sarcástico.

– Aspiro a servir em favor de alguém... Nada encontro aqui para ser útil... Por piedade, deixe-me seguir para o inferno, onde espero movimentar-me e ser diferente...

Foi então que o enigmático chefe sorriu e falou, claro:

– Hemetério, você pede para descer ao inferno, mas escute, meu caro!... Sem responsabilidade, sem disciplina, sem trabalho, sem qualquer necessidade de praticar a abnegação, como vive agora, onde pensa você que já está?  [6]

 

Devido à crença de que o céu se trata de uma realidade caracterizada pelo “doce fazer nada”, onde ficaremos eternamente cantando hosanas a Deus, mais uma vez nos reportamos a Kardec:

“O que é preciso entender quando se diz que os Espíritos puros estão reunidos no seio de Deus e ocupados em Lhe cantar louvores?”

 

Resposta:

É uma alegoria que pinta a inteligência que eles têm das perfeições de Deus, porque veem e compreendem, mas que não é preciso mais prender à letra como muitas outras. Tudo na Natureza, desde o grão de areia, canta, quer dizer, proclama o poder, a sabedoria e a bondade de Deus. Mas não creias que os Espíritos bem-aventurados estejam em contemplação durante a eternidade, pois isso seria uma felicidade estúpida e monótona. Seria mais a do egoísta, uma vez que sua existência seria uma inutilidade sem-termo. Eles não têm mais as tribulações da existência corporal; já é um gozo. Aliás, como dissemos, eles conhecem e sabem todas as coisas e aproveitam a inteligência que adquiriram para ajudar o progresso dos outros Espíritos. É sua ocupação e, ao mesmo tempo, um prazer.  [7]

 

Tal é a felicidade do espírito verdadeiramente evoluído: não o usufruir de prazeres que tem por modelo as necessidades materiais, mas de dar ao seu júbilo uma finalidade nobre e útil, a fim de, realmente, alcançar plenitude íntima.

 

 

 

No momento da morte, qual é o sentimento que domina a maioria dos homens: a dúvida, o medo ou a esperança?

A dúvida para os céticos endurecidos; o medo para os culpados e a esperança para os homens de bem. [8]

 

 

 

Através do uso da razão, torna-se difícil acreditar e aceitar que Deus permita a dor eterna, ou que tenha criado a punição impiedosa; ou, ainda, que queira que uns gozem, sem trabalho, de benesses que outros só alcançam através de muito esforço e perseverança.

 

A Doutrina Espírita nos ensina que Ele criou a todos nós como seres simples e ignorantes para que, com o próprio empenho e mérito, pudéssemos atingir níveis mais elevados de bem-aventurança.

 

Sendo assim, optar pelo “céu” ou pelo “inferno” é uma questão puramente pessoal, porque, detentores que somos de livre-arbítrio, temos o direito de escolher o próprio caminho, mas, obrigatória e concomitantemente, de dar conta das consequências dos atos praticados.

 

O Espírito Emmanuel enfatiza:

 

A morte a ninguém propiciará passaporte gratuito para a ventura celeste. Nunca promoverá compulsoriamente homens a anjos. Cada criatura transporá essa aduana da eternidade com a exclusiva bagagem do que houver semeado, e aprenderá que a ordem e a hierarquia, a paz do trabalho edificante, são característicos imutáveis da Lei, em toda parte.

Ninguém, depois do sepulcro, gozará de um descanso a que não tenha feito jus, porque ‘o Reino do Senhor não vem com aparências externas’.

(...) É natural, porém: cada lavrador respira o ar do campo que escolheu. [9]

 

 

Silvia Helena Visnadi Pessenda

sivipessenda@uol.com.br

 

 

REFERÊNCIAS

 

[1]  ANDRÉ LUIZ (espírito); XAVIER, Francisco Cândido (psicografado por). Missionários da luz. 31. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1999. Cap. 17. p. 261.

 

[2] ANDRÉ LUIZ (espírito); XAVIER, Francisco Cândido (psicografado por). Obreiros da vida eterna. 24. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2000. Cap. 16. p. 242.

 

[3] ANDRÉ LUIZ (espírito); XAVIER, Francisco Cândido (psicografado por). Nosso lar. 49. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira,1999. Cap. 30. p. 167.

 

[4] ANDRÉ LUIZ (espírito); XAVIER, Francisco Cândido (psicografado por). Os mensageiros. 33. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1999. Cap. 5. p. 33.

 

[5] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Salvador Gentile, revisão de Elias Barbosa. 100. ed. Araras, SP: IDE, 1996. q. 1006.

 

[6]  IRMÃO X (espírito); XAVIER, Francisco Cândido (psicografado por). Estante da vida. 6. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira. Cap. 29. p. 133.

 

[7] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Salvador Gentile, revisão de Elias Barbosa. 100. ed. Araras, SP: IDE, 1996. q. 969.

 

[8] Idem. q. 961.

 

[9] ANDRÉ LUIZ (espírito); XAVIER, Francisco Cândido (psicografado por). No mundo maior. 20. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira. Cap. “Na jornada evolutiva”. p. 11-12.

 

 

HAMMED (espírito); SANTO NETO, Francisco do Espírito (psicografado por). Um modo de entender: uma nova forma de viver. 1. ed. Catanduva, SP: Boa Nova Editora, 2004.       

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